quinta-feira, 9 de junho de 2011

O homem que sonhava


Sonhei que estava sonhando que o mundo era um tiquinho mais humano, solidário e justo. Sonhei que estava sonhando que eu havia nascido em uma cidade bem menor do que a que eu moro hoje. Sonhei que estava sonhando também que, por mais difíceis que fossem as situações meu coração havia sido inaugurado e recheado de amor. Sonhei que eu estava sonhando com um beijo amoroso e um abraço quente da vovó e do vovô (que moravam na cidade que eu sonhei que estava sonhando que eu tinha nascido). Sonhei que estava sonhando que, naquele tempo - da cidade que sonhei que eu estava sonhando que eu tinha nascido - eu tinha papai, mamãe, irmão, avó, avô, tia, primos e todas aquelas pessoas que a gente sonha que um dia sonhou que teríamos na família. Essa minha tentativa-urgente de expressar o que sonhei que eu estava sonhando ficou um pouco confusa. Vou tentar melhorar:

Sonhei que eu sonhava que tudo doía e me fazia sentir saudade. Sonhei que eu sonhava que chorava por tudo o que fui, por tudo o que eu sou e por tudo o que eu tentei ser e não consegui. Por todos aqueles pedidos que fiz e, por algum motivo, não foram atendidos. Pela renúncia. Por todos aqueles sentimentos que eu queria sentir e, totalmente por incompetência ou desleixo, não foram sentidos. Por todo amor que dispensei e não me foi retribuído. Pelo respeito, dignidade e consideração - detalhes cada vez mais perdidos por grande parte das pessoas que tentam se encontrar em redes sociais: gélidas, vagas, superficiais (as redes, as pessoas). Sonhei que eu sonhava que eu estava sentindo muito medo de embarcar em uma viagem que talvez não teria volta: por que nós, humanos, somos mesquinhos e temos medo de adentrar o desconhecido, desbravar o novo, "dar a cara pra bater". Sonhei que eu sonhava muitos sentimentos, e esse era o grande problema: sentimentos não devem ser sonhados - ainda mais sonhados que sonhamos - devem ser abraçados, sentidos, tornando-se parte de nós.

Sonhar é acordar para dentro. Então, acordei do sonho do qual eu estava sonhando: agora estou mais liberto e apenas sonho. Não tenho o (des)conforto de sonhar que sonhava como antes. Sonhar que se estava sonhando é algo muito distante, feito pó que quando jogamos para cima: brilha, confunde, perturba, de-sa-pa-re-ce! Enfim, tudo agora está mais concreto e mais fácil de decifrar e compreender.

Sonhei com uma possibilidade de amor. Não com uma possibilidade boba, fútil, singela. Uma possibilidade daquelas que Deus coloca no caminho da gente como se estivesse dizendo que "dessa vez é para dar certo". Tratei essa possibilidade como um objeto que me pertencia e eu daria o destino necessário, conveniente. Todas as vezes que me sentia ameaçado ou mal amado, eu entrava no quarto, abria a primeira gaveta do criado-mudo e, lá de dentro tirava uma caixinha. Dentro da caixinha estava guardada a tal possibilidade. Dias atrás, sonhei que o quarto pegara fogo: o quarto, o criado-mudo, a primeira gaveta, a caixinha e, logicamente, a possibilidade. Até tentei ligar para ela. Inclusive, encontrei o número na agenda do celular. Claro, ninguém atendia. Desde então não me apego mais a possibilidades, principalmente quando são possibilidades-melosas-impossíveis-bobas-chatas-repetitivas-de-amor.

Já sonhei com o futuro e juro que me surpreendi. Já sonhei com pessoas que eu amava e com inimigos. Com fórmulas de física e nomenclaturas da química orgânica. Até com livros que eu nunca havia lido eu já sonhei. Tenho medo de quebrar esses sonhos: são como bebês, diamantes, cristais. Sonhei e continuo sonhando. Por detrás dessa vidraça, observando tanto concreto, poucas árvores, alguns aviões e contemplando as cores do sonho da maneira mais absoluta que alguém poderia fazê-lo: sonho. Só peço que não me despertem. Nunca.