terça-feira, 5 de julho de 2011

Uma carta para além dos muros: 06.07.1992 - 06.07.2011



"Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor:
onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
em que direção se vai?"
(Adélia Prado: O coração disparado)

Não sei bem a maneira mais correta, ou mais coerente, ou mais respeitosa de me dirigir ao Senhor numa comunicação epistolar. No meu íntimo sei bem como deve ser a abordagem, mas em ocasiões tão especiais, em um dia como o de hoje, sinto-me um tanto confuso. Não se assuste: nessa carta tentarei não ser demasiadamente pessoal. Serei objetivo, direto, falarei de fatos, da minha vida ou não, da minha história ou não, de medos e deslumbramentos, de caminhadas matinais. Exatamente hoje, no sexto amanhecer de julho.

Senhor, nasci contemplado, com uma família linda que, desde meus primeiros suspiros, me encheu de amor, carinho, mimos e presentes. Uma mãe que, desde os três dias póstumos à entrada do sol em Áries, resolvi chamar de cisne branco. Delicada, sensível, compreensiva, inteligente. Um pai, que nunca consegui definir muito bem a personalidade. Talvez um gato negro. Jacaré. Cão. Não sei... Não sei nem por onde ele anda, se faz três refeições diárias, se vê pássaros assentados nos fios dos postes. Avó paterna: me “estragou” e me “estraga” até hoje. Avô paterno: grisalho, falante, antenado. Os outros dois, maternos, nunca fizeram grande diferença, nunca foram próximos de mim, nunca me amaram de forma muito expressiva – o que não significa que eles não me amem, talvez tenham apenas dificuldade em demonstrar isso. Um irmão, inteligentíssimo, contudo secretíssimo.

Senhor, Jesus, nasci também com um dragão aqui dentro. Inquietação. Alma de jornalista.

Não peço nada extraordinário. Peço luz, paz, tranqüilidade. Comida pra quem não tem, cultura e arte. Liberdade. Peço, com veemência, mais sabedoria e respeito: comigo, com todos os seres humanos. Que os pastores parem de pregar absurdos, que as pessoas não sejam impedidas de amar, que escolhas sexuais e religiosas não façam diferença e não julguem maior ou menor grau de moralidade. Que os políticos não gastem à toa nossos impostos e que, nós, na hora de votar, possamos escolher melhor e, no mínimo, ter opções plausíveis. Tudo isso que peço depende de nós, todos nós, mas depende também do Senhor.

Tento não ser pessoal, tenho muito medo de espantá-lo, fazê-lo desistir da leitura dessa carta. Peço por todos, sempre fui altruísta.

Aos meus dezenove, não sei muito mais que a minha própria fome. Nunca amei – embora, às vezes, fico em dúvida ao falar isso – e nem nunca sofri por e de amor. Fico confusíssimo, não sei bem distinguir (numa relação entre eu e uma pessoa que não é da minha família pelo qual sinto desejo carnal) amor, sexo e paixão. Como diria Caetano Veloso: “isso que chamamos de amor, esse lugar confuso entre o sexo e a organização familiar”.  Mas peço, com fé, que todas as pessoas, um dia, qualquer deles de sua vida, possam amar. Que tenham essa possibilidade, que sejam correspondidas e menos frustradas.

E por último, numa tentativa de ser menos prolixo, imploro o livramento do ciclo seco: esse espectro que ronda o Brasil, talvez o mundo. No ciclo seco apenas se age, sem sentimentos, sem grandes expectativas. No ciclo seco não se espera muito de nada nem de ninguém, aliás, não se espera. O ciclo seco não é feio nem bonito, bom ou ruim. Ele não se interessa por nada, fica a completa indiferença para todos os acontecimentos do país: o caos do governo Dilma, o despreparo dos professores, das escolas, os assaltos, os ônibus quebrados. E não adianta nos livrar do ciclo seco, Jesus, o Senhor precisa nos livrar dele e dos que fazem girar o processo-ciclo-seco.

O que fica, após os dezenove-invernos, é um filtro cada vez mais seletivo. Que filtra falsidades, najices, mesquinharias, conversinhas atravessadas, pessoas fúteis e pessimistas, ciclos secos. Filtra muita coisa, passa por ele só os bons sentimentos. E eu agradeço por ele, Senhor. E agradeço pelo caminho florido em que venho andando, sendo protegido. Obrigado.