sexta-feira, 29 de julho de 2011

Três dias após a entrada do sol em Áries

(Um conflito entre o cisne branco, o dragão e o cisne negro)
à mamãe Luciana e ao eterno Caio


I – Uma oração para o dia vinte e seis

Senhor, abençoe todos aqueles que lutam, sem desistir, sangrando muito, incansavelmente, por qualquer coisa, por coisa qualquer. Neste vinte e seis do mês três, que as lágrimas possam transformar-se em sorrisos e, que o vento que dança e balança as folhas daqueles pés de girassóis, balancem os cabelos pretos e a inocência de mamãe. Que o senhor traga paz e descanso aos velhos corações, já que, a velhice é a única doença que não tem cura. Que aquilo que, com descuido, chamamos de amor, não se banalize e não seja utilizado pelos que amam a falsidade. Olhai pelo pintor, pelo vendedor de picolés. Reconforte a prostituta, que enfrenta uma rotina triste e perigosa. Cuida daquele que ama o próprio e não ama si mesmo. Dê comida a quem tem fome. Dê água ao sedento. Neste vinte e seis, que o sol nasça mais quente, que o gramado reflita o verde mais esperança, e que, aquele executivo que já acorda cansado possa ouvir o mais doce canto dos pássaros. Que as pessoas, todas elas, se libertem das redes virtuais e façam o uso da boa educação no cotidiano. Que todos tenham a oportunidade de se alfabetizarem e assinarem seu nome com orgulho. Que ninguém seja excluído ou se torne alvo de preconceito. Deus, olhai para nós, que queremos viver o amor da sua forma mais intensa, para nós, que não sentimos há muito tempo o cheiro de mel & girassóis. Para os soberbos, para os que fingem ser algo que não são, ou desejam ter uma vida diferente daquela que possuem, não dê força, nem sol, nem quentura, nem clareza nenhuma. Nesse fim de março, nesse vinte e seis, nessa entrada póstuma do sol em Áries, afasta todo o mal de mim e daquelas pessoas que amam do fundo do coração. Não digam Amém. Apenas peçam. Às vezes, pedir é a única coisa que ainda pode se fazer.

II – A respeito da essência do cisne branco

Há trinta e cinco anos, o dia vinte e seis acordara da melhor forma possível. Deus tinha enviado o sol mais luminoso. Tudo estava diferente do que está: as coisas eram traçadas por contornos mansos e nada feria como fere agora. Nascia Luciana, e, com ela, para morar dentro de seu coração, um típico cisne branco: clássico, extremamente sensível e de contornos singelos, como os que traçavam as coisas no dia de seu nascimento. Um cisne diferente de todos aqueles que haviam estreado até aquele um mil novecentos e noventa e seis. Aos dezesseis, fez cara de princesa da Disney, de Cinderela, e até hoje diz que não foi culpa dela. A principal causa do sofrimento do cisne é a sua brancura. Sua brancura o impede de desafiar situações interessantes, de levantar novas bandeiras, de pisar em novos pisos, de “apostar em cavalos diferentes”. O cisne branco contenta-se com a simplicidade, com a explosão instantânea da beleza do lago. Ele tem medo de contornos duros, contornos duros podem ferir. O cisne branco tem rotina. Flutua sempre pelas mesmas águas, ouve sempre os mesmos sons e, constantemente, sente o cheiro de mel & girassóis que todos aqueles que amam verdadeiramente desejam sentir. A mesma brancura que priva o cisne de experiências estarrecedoras, confere-lhe extremo pudor, bom gosto e afeto. Todos se sentem acolhidos pela sua brancura. O cisne branco “completa” a beleza da paisagem. O cisne branco não possui grandes vaidades, não flutua de maneira arrogante, não faz questão de se mostrar. É discreto. Discrição é a principal característica dessa ave. O cisne branco mora com Luciana e não quer, de modo algum, abandonar seu habitat.

III – O cisne branco e o dragão

Não é surpresa para você, mamãe, que tenho um dragão que mora comigo. Um dragão, teoricamente, não poderia ser amigo ou manter qualquer relação com um cisne branco. O dragão que mora comigo insiste em querer acinzentar a brancura iluminadora do cisne que mora contigo. O dragão não é sensível, não age com o coração, não se apega à ninguém, não sofre por amor. O dragão é uma daquelas criaturas que deveriam viver sozinhas, isoladas do caos urbano, da UFU e do Jornalismo. 
O modo grosseiro como o dragão solta o fogo das ventas pode queimar as penas do seu cisne. O dragão que mora comigo só tenta fortalecer o cisne que mora contigo. O dragão não contenta-se com a beleza do lago ou com o cantar doce dos pássaros. O dragão não desfila, o dragão nunca se inaugura. Te peço desculpas pela não-estréia, pelo não-abrir das cortinas, apesar de que, eu espero sempre as palmas, ou melhor, o balanço das asas do cisne branco.

IV – O dragão deseja um cisne negro

Muitas, incontáveis vezes, tive vontade de colocar-me de frente para o cisne branco. Seria muito mais interessante um cisne negro. Da cor da noite. Um cisne desapegado do conceito de limite, que flutuasse por diferentes águas, que sentisse diferentes aromas, que não se abalasse com a presença de um segundo cisne. Um cisne um pouco mais forte que o branco. Só desejamos isso, eu e o dragão que mora comigo, porque preocupamos com a felicidade e a paz interior do cisne. Tememos sua fragilidade. Tememos sua rotina. Tememos sua inocência. Tememos que ele morra como nasceu, todo branco, sem mancha negra alguma. Manchas negras, aquelas que nos marcam quando perdemos um grande amor ou quando morre um parente próximo. Tememos que o cisne branco morra sem ter vivido, apenas tendo existido.

V – A morte do dragão e, por fim, a solução

Solucionei a problemática: mamãe Luciana continuará morando com o cisne branco e eu, eu, com um cisne negro. Destruirei o tal dragão, habitante do meu coração e vísceras. Conviverão dois cisnes, cada qual com uma personalidade, um ajudando o outro. Um contrato bastante justo, mamãe: você continua com sua leveza e fragilidade e eu atenuo meus duros contornos e insensibilidades. Você será o dia, eu serei a noite. Os dois cisnes sentirão para sempre o cheiro de mel & girassóis, pois ambos amam da forma mais pura e verdadeira. Sinta, agora, o encontro dos dois cisnes e ouça a minha voz, abafada, desejando a doçura mais doce, por todos os anos de nossas vidas.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Uma carta para além dos muros: 06.07.1992 - 06.07.2011



"Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor:
onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
em que direção se vai?"
(Adélia Prado: O coração disparado)

Não sei bem a maneira mais correta, ou mais coerente, ou mais respeitosa de me dirigir ao Senhor numa comunicação epistolar. No meu íntimo sei bem como deve ser a abordagem, mas em ocasiões tão especiais, em um dia como o de hoje, sinto-me um tanto confuso. Não se assuste: nessa carta tentarei não ser demasiadamente pessoal. Serei objetivo, direto, falarei de fatos, da minha vida ou não, da minha história ou não, de medos e deslumbramentos, de caminhadas matinais. Exatamente hoje, no sexto amanhecer de julho.

Senhor, nasci contemplado, com uma família linda que, desde meus primeiros suspiros, me encheu de amor, carinho, mimos e presentes. Uma mãe que, desde os três dias póstumos à entrada do sol em Áries, resolvi chamar de cisne branco. Delicada, sensível, compreensiva, inteligente. Um pai, que nunca consegui definir muito bem a personalidade. Talvez um gato negro. Jacaré. Cão. Não sei... Não sei nem por onde ele anda, se faz três refeições diárias, se vê pássaros assentados nos fios dos postes. Avó paterna: me “estragou” e me “estraga” até hoje. Avô paterno: grisalho, falante, antenado. Os outros dois, maternos, nunca fizeram grande diferença, nunca foram próximos de mim, nunca me amaram de forma muito expressiva – o que não significa que eles não me amem, talvez tenham apenas dificuldade em demonstrar isso. Um irmão, inteligentíssimo, contudo secretíssimo.

Senhor, Jesus, nasci também com um dragão aqui dentro. Inquietação. Alma de jornalista.

Não peço nada extraordinário. Peço luz, paz, tranqüilidade. Comida pra quem não tem, cultura e arte. Liberdade. Peço, com veemência, mais sabedoria e respeito: comigo, com todos os seres humanos. Que os pastores parem de pregar absurdos, que as pessoas não sejam impedidas de amar, que escolhas sexuais e religiosas não façam diferença e não julguem maior ou menor grau de moralidade. Que os políticos não gastem à toa nossos impostos e que, nós, na hora de votar, possamos escolher melhor e, no mínimo, ter opções plausíveis. Tudo isso que peço depende de nós, todos nós, mas depende também do Senhor.

Tento não ser pessoal, tenho muito medo de espantá-lo, fazê-lo desistir da leitura dessa carta. Peço por todos, sempre fui altruísta.

Aos meus dezenove, não sei muito mais que a minha própria fome. Nunca amei – embora, às vezes, fico em dúvida ao falar isso – e nem nunca sofri por e de amor. Fico confusíssimo, não sei bem distinguir (numa relação entre eu e uma pessoa que não é da minha família pelo qual sinto desejo carnal) amor, sexo e paixão. Como diria Caetano Veloso: “isso que chamamos de amor, esse lugar confuso entre o sexo e a organização familiar”.  Mas peço, com fé, que todas as pessoas, um dia, qualquer deles de sua vida, possam amar. Que tenham essa possibilidade, que sejam correspondidas e menos frustradas.

E por último, numa tentativa de ser menos prolixo, imploro o livramento do ciclo seco: esse espectro que ronda o Brasil, talvez o mundo. No ciclo seco apenas se age, sem sentimentos, sem grandes expectativas. No ciclo seco não se espera muito de nada nem de ninguém, aliás, não se espera. O ciclo seco não é feio nem bonito, bom ou ruim. Ele não se interessa por nada, fica a completa indiferença para todos os acontecimentos do país: o caos do governo Dilma, o despreparo dos professores, das escolas, os assaltos, os ônibus quebrados. E não adianta nos livrar do ciclo seco, Jesus, o Senhor precisa nos livrar dele e dos que fazem girar o processo-ciclo-seco.

O que fica, após os dezenove-invernos, é um filtro cada vez mais seletivo. Que filtra falsidades, najices, mesquinharias, conversinhas atravessadas, pessoas fúteis e pessimistas, ciclos secos. Filtra muita coisa, passa por ele só os bons sentimentos. E eu agradeço por ele, Senhor. E agradeço pelo caminho florido em que venho andando, sendo protegido. Obrigado.