Meu coração é um canteiro de obras, repleto de pedreiros, serventes, engenheiros: todos musculosos, fortes, viris. A última coisa com a qual eles estão preocupados é com um desenvolver rápido da obra. Todos eles assoviam, incomodam e gritam com as mulheres de ancas largas, vestidos estampados e cabelos-alisados-por-escovas-progressivas que se arriscam a passar próximas ao portão principal. Por aqui há demasiada desorganização e recipientes com água parada, paraíso para os mosquitos da dengue.
Meu coração é o cenário ideal de uma tragédia. Sombrio, escuro, de repartimentos desconhecidos. Por aqui é possível se cometer variados crimes e pecados. O público percebe claramente os três atos, vagamente delineados por um fechar de cortinas de fino filó, já desgastado pelo tempo. Ora aplaudida ora vaiada, a tragédia já está em cartaz há 18 anos-e-onze-meses.
Meu coração é a redação de um jornal do interior. Um jornalista, apenas ele, sozinho, faz pautas, textos e fotos de toda a edição. Tudo numa máquina de escrever. Um detalhe: ele ganha mal e ainda não fez seu curso de datilografia. Cafés e cigarros permeiam seus dias e suas noites. Ele, constantemente, pensa deixar a profissão, contudo acredita que, de alguma maneira, possa mudar o mundo.
Meu coração é um botequim da Lapa, que oferece bolinhos de bacalhau e cerveja bem gelada aos clientes. O garçom que trabalha nesse botequim é comunicativo e conquista a amizade de todos os clientes. É cheio nas noites de sexta-feira. Vazio e triste nas noites de domingo. A fachada e colorida e repleta de girassóis.
Meu coração é o principal entrevistado do Programa do Jô, em todas as noites, de todos os dias, semanas, meses, anos. O sexteto toca o Hino da Alegria, de Beethoven e me recepciona incrivelmente bem. As pré-estrevistas simplesmente não são mais feitas, já que tudo anda óbvio demais.
Meu coração vive uma coisa de cada vez. De sandálias baixas ou de salto quinze, ele desperta toda manhã, de sol ou de chuva, de segunda ou de sábado. Ele vive intensamente a escassez de dinheiro no final de todo mês e, muitas vezes, está mais faminto e sedento que o mendigo mais sedento e faminto de todo o mundo. Defende-se das mazelas da vida como uma prostituta já agredida muitas vezes; como um tigre que cuida da sua cria; como um antigo milionário que perdera tudo nos cassinos de Miami.
Ele não é de ninguém.



