quarta-feira, 22 de junho de 2011

"Na terra do coração"


Artéria Aorta, veia cava superior, artéria do pulmão esquerdo, artéria do pulmão direito, veias do pulmão esquerdo, veias do pulmão direito, veia oblíqua da aurícula esquerda, aurícula direita, apêndice auricular direito, ventrículo esquerdo, ventrículo direito, veia cava inferior, zona apical. Tudo humano demais.

Meu coração é um canteiro de obras, repleto de pedreiros, serventes, engenheiros: todos musculosos, fortes, viris. A última coisa com a qual eles estão preocupados é com um desenvolver rápido da obra. Todos eles assoviam, incomodam e gritam com as mulheres de ancas largas, vestidos estampados e cabelos-alisados-por-escovas-progressivas que se arriscam a passar próximas ao portão principal. Por aqui há demasiada desorganização e recipientes com água parada, paraíso para os mosquitos da dengue.

Meu coração é o cenário ideal de uma tragédia. Sombrio, escuro, de repartimentos desconhecidos. Por aqui é possível se cometer variados crimes e pecados. O público percebe claramente os três atos, vagamente delineados por um fechar de cortinas de fino filó, já desgastado pelo tempo. Ora aplaudida ora vaiada, a tragédia já está em cartaz há 18 anos-e-onze-meses.

Meu coração é a redação de um jornal do interior. Um jornalista, apenas ele, sozinho, faz pautas, textos e fotos de toda a edição. Tudo numa máquina de escrever. Um detalhe: ele ganha mal e ainda não fez seu curso de datilografia. Cafés e cigarros permeiam seus dias e suas noites. Ele, constantemente, pensa deixar a profissão, contudo acredita que, de alguma maneira, possa mudar o mundo.

Meu coração é um botequim da Lapa, que oferece bolinhos de bacalhau e cerveja bem gelada aos clientes. O garçom que trabalha nesse botequim é comunicativo e conquista a amizade de todos os clientes. É cheio nas noites de sexta-feira. Vazio e triste nas noites de domingo. A fachada e colorida e repleta de girassóis.

Meu coração é o principal entrevistado do Programa do Jô, em todas as noites, de todos os dias, semanas, meses, anos. O sexteto toca o Hino da Alegria, de Beethoven e me recepciona incrivelmente bem. As pré-estrevistas simplesmente não são mais feitas, já que tudo anda óbvio demais.

Meu coração vive uma coisa de cada vez. De sandálias baixas ou de salto quinze, ele desperta toda manhã, de sol ou de chuva, de segunda ou de sábado. Ele vive intensamente a escassez de dinheiro no final de todo mês e, muitas vezes, está mais faminto e sedento que o mendigo mais sedento e faminto de todo o mundo. Defende-se das mazelas da vida como uma prostituta já agredida muitas vezes; como um tigre que cuida da sua cria; como um antigo milionário que perdera tudo nos cassinos de Miami.

Ele não é de ninguém.

domingo, 12 de junho de 2011

O tal doze-de-junho


Carências jamais supridas. Traumas de infância. Medo de perder. Vontade de guardar o outro numa caixinha de madeira espessa dentro da última gaveta do criado mudo. 1-2-3-ligações diárias não atendidas. E-mails enviados em vão. Almoços solitários de domingo-cinza-chuvoso. Necessidade de autoafirmação. Redes sociais. 

Não sei se fui eu que endureci ou se são as pessoas que estão moles demais. Uma transa é uma transa. Um namoro é um namoro. Ligações são ligações. Escrituras ainda são APENAS para imóveis, graças a Deus. 

E neste 12 de junho, em plena madrugada, percebi-me pensativo acerca do dia dos namorados e concluí que estou cada vez mais feliz e realizado com minhas escolhas. Eu gosto é da liberdade escancarada, talvez até mais que Sartre. Acordar às três da tarde de um domingo-romântico-ensolarado e comer dois salgados da padaria que fica logo ali. Não receber ligações quando estou fazendo minhas refeições e curtindo o final de semana com meus amigos/familiares/etc. Não ter que gastar dinheiro no dia doze-de-junho comprando presentes caros e ridículos que só servirão para serem devolvidos nos términos de relacionamento. Não ter que preocupar com o sexo quase obrigatório do dia doze-de-junho. Poder ficar na internet, sem restrições de horários, todos os dias, semanas, meses anos, décadas e séculos e oceanos. Usar o dia doze-de-junho para colocar minhas leituras em dia. Não viver o doze-de-junho. 

Não tenho a pretensão de influenciar ninguém. Isso foi só um "recorte" da minha humilde opinião. Feliz doze-de-junho, pessoal!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O homem que sonhava


Sonhei que estava sonhando que o mundo era um tiquinho mais humano, solidário e justo. Sonhei que estava sonhando que eu havia nascido em uma cidade bem menor do que a que eu moro hoje. Sonhei que estava sonhando também que, por mais difíceis que fossem as situações meu coração havia sido inaugurado e recheado de amor. Sonhei que eu estava sonhando com um beijo amoroso e um abraço quente da vovó e do vovô (que moravam na cidade que eu sonhei que estava sonhando que eu tinha nascido). Sonhei que estava sonhando que, naquele tempo - da cidade que sonhei que eu estava sonhando que eu tinha nascido - eu tinha papai, mamãe, irmão, avó, avô, tia, primos e todas aquelas pessoas que a gente sonha que um dia sonhou que teríamos na família. Essa minha tentativa-urgente de expressar o que sonhei que eu estava sonhando ficou um pouco confusa. Vou tentar melhorar:

Sonhei que eu sonhava que tudo doía e me fazia sentir saudade. Sonhei que eu sonhava que chorava por tudo o que fui, por tudo o que eu sou e por tudo o que eu tentei ser e não consegui. Por todos aqueles pedidos que fiz e, por algum motivo, não foram atendidos. Pela renúncia. Por todos aqueles sentimentos que eu queria sentir e, totalmente por incompetência ou desleixo, não foram sentidos. Por todo amor que dispensei e não me foi retribuído. Pelo respeito, dignidade e consideração - detalhes cada vez mais perdidos por grande parte das pessoas que tentam se encontrar em redes sociais: gélidas, vagas, superficiais (as redes, as pessoas). Sonhei que eu sonhava que eu estava sentindo muito medo de embarcar em uma viagem que talvez não teria volta: por que nós, humanos, somos mesquinhos e temos medo de adentrar o desconhecido, desbravar o novo, "dar a cara pra bater". Sonhei que eu sonhava muitos sentimentos, e esse era o grande problema: sentimentos não devem ser sonhados - ainda mais sonhados que sonhamos - devem ser abraçados, sentidos, tornando-se parte de nós.

Sonhar é acordar para dentro. Então, acordei do sonho do qual eu estava sonhando: agora estou mais liberto e apenas sonho. Não tenho o (des)conforto de sonhar que sonhava como antes. Sonhar que se estava sonhando é algo muito distante, feito pó que quando jogamos para cima: brilha, confunde, perturba, de-sa-pa-re-ce! Enfim, tudo agora está mais concreto e mais fácil de decifrar e compreender.

Sonhei com uma possibilidade de amor. Não com uma possibilidade boba, fútil, singela. Uma possibilidade daquelas que Deus coloca no caminho da gente como se estivesse dizendo que "dessa vez é para dar certo". Tratei essa possibilidade como um objeto que me pertencia e eu daria o destino necessário, conveniente. Todas as vezes que me sentia ameaçado ou mal amado, eu entrava no quarto, abria a primeira gaveta do criado-mudo e, lá de dentro tirava uma caixinha. Dentro da caixinha estava guardada a tal possibilidade. Dias atrás, sonhei que o quarto pegara fogo: o quarto, o criado-mudo, a primeira gaveta, a caixinha e, logicamente, a possibilidade. Até tentei ligar para ela. Inclusive, encontrei o número na agenda do celular. Claro, ninguém atendia. Desde então não me apego mais a possibilidades, principalmente quando são possibilidades-melosas-impossíveis-bobas-chatas-repetitivas-de-amor.

Já sonhei com o futuro e juro que me surpreendi. Já sonhei com pessoas que eu amava e com inimigos. Com fórmulas de física e nomenclaturas da química orgânica. Até com livros que eu nunca havia lido eu já sonhei. Tenho medo de quebrar esses sonhos: são como bebês, diamantes, cristais. Sonhei e continuo sonhando. Por detrás dessa vidraça, observando tanto concreto, poucas árvores, alguns aviões e contemplando as cores do sonho da maneira mais absoluta que alguém poderia fazê-lo: sonho. Só peço que não me despertem. Nunca.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Conflitos de um quase Jornalista



Eu sempre quis ser jornalista. Sempre. Desde que eu assistia o MGTV 1ª Edição – com aquela apresentadora loira e linda, lembram dela? Bem pequeno e já desejava a cadeira da loira (que ficava atrás daquela bancada gloriosa, à frente das belas fotos aqui da nossa região). Sem falar de Fátima Bernardes e Wiliam Bonner, que me deixam em êxtase até hoje.

Vocês não imaginam o quanto de bullying sofri da minha família com essa minha idéia. Meu filho, a santa Fulana de Tal vai iluminar seus caminhos, dizia minha mãe. Jornalista é como jogador de futebol: pouquíssimos se dão bem, completava papai. Tem tanta profissão melhor, que dá um futuro seguro, acrescentava vovó. Uma tia minha – daquelas bem chatas, gordas, que consideram você uma criança mesmo depois de alguns centímetros de barba crescida – insistia para que eu prestasse um concurso da Petrobrás ou do Banco do Brasil... Jornalismo era pra gente vagabunda, que não quer nada com a vida.

Para arruinar ainda mais minha situação, quando eu estava no segundo ano e quase conseguindo convencer minha família de que o Jornalismo é um bom curso e que eu poderia me dar bem na profissão, o Gilmar “encanou” de tirar a obrigatoriedade do diploma de Jornalista para se trabalhar. Fiquei desesperado! Mamãe dizia aos quatro cantos que agora qualquer um poderia ser Jornalista, e eu a retrucava, dizendo não, não, não. Imagine a Maria jornalista, mamãe? Ela não sabe nem concordar os verbos, não lê, não se informa, nem paragrafar ela sabe.

A não exigência do diploma não me desanimou, a titia gorda também não. Mamãe, papai e vovó, muito menos. Fiz minha inscrição no vestibular para Jornalismo. Cheguei em casa com medo de ser expulso, ter que dormir na rua. Pelo menos vai continuar estudando, dizia mamãe. Terá que passar bem colocado, paguei um absurdo nessa inscrição, completava papai. Fiquei satisfeita, pelo menos vai estudar na UFU, acrescentava vovó. Titia se animou e vivia me perguntando quando me veria no Jornal Nacional. Coisa chata.

Na época do vestibular: dois dentes cisos nasceram, fortíssimas crises de vômito, corpo infestado por furúnculos, pressão arterial oscilando demasiadamente. Pois é, passei. Pensei que os ânimos iriam se acalmar, que a vida ficaria mais colorida e gostosa de viver, que eu teria tempo de fazer caminhadas, leituras que estavam à espera, sair com amigos, viajar. Ah, doce ilusão!

Toda segunda, resenha. Toda terça, atividades da Cida Ottoni. Toda quarta, divagações sociológicas do Rodrigo. Toda quinta, Filosofia em Alemão com o Jakob. Toda sexta, relatórios da Sandra e correria, muita correria, com a Ana. As pessoas – agora todas elas, não só minha tia gorda – me irritam, perguntando quando estarei apresentando o Jornal Nacional (ninguém entende que o Telejornalismo é só uma disciplina do curso).

Mamãe agora vive imprimindo e guardando tudo o que eu escrevo. Papai torce para que eu trabalhe com jornalismo esportivo (vou deixar que ele sonhe um pouquinho). Vovó ficou traumatizada com a morte dos jornalistas que estavam no Morro do Alemão e vive tentando me convencer a mudar de curso. Minha tia gorda? Vamos ver se vocês adivinham... Quer me ver no Jornal Nacional por toda lei – mas disse que se satisfaz me vendo no Jornal Hoje ou no Jornal da Globo.

O jornalismo é viciante. É inesperado. É líquido demais. Não há dinheiro no mundo que pague a ansiedade em uma reunião de pauta, a emoção de uma matéria escrita por você publicada em uma primeira página, a possibilidade de auxiliar os mais humildes, de consertar estradas, de denunciar corrupção, de fazer justiça.

Fazer o que manda o coração da gente é a melhor coisa que existe.