terça-feira, 8 de março de 2011

Maria da Graça dos Anjos e as suas duas naturezas


[Para Lucilene Gomes Diniz, minha madrinha, que rezou pelo desaparecimento das minhocas que insistiam em invadir sua casa]

As minhocas ensaiam sua saída dos canteiros da casa de Maria da Graça dos Anjos. São grandes, determinadas, majestosas, não respeitam o espaço da família. Saem inescrupulosas do solo encharcado numa marcha frenética para o local que não as pertence. Estão por toda a parte, uma depois da outra, e a fila se desenvolve, uma mais disposta que a outra. Maria da Graça agora está no quarto e nunca espera a chegada das tais minhocas. Ter minhocas entrando casa a dentro é coisa desagradável.

Os anelídeos da classe Oligoqueta, ordem Haplotaxida, distribuídos pelos solos úmidos de todo o mundo, insistem em complicar a vida de Maria da Graça dos Anjos e de sua família. A matriarca já fez de tudo, basta caírem as lágrimas de Deus e as minhocas ressurgem todas. É como se os olhos do mundo estivessem tentando filmar uma realidade muito banal, muito inútil. Graça não entendia o real objetivo das minhocas. Com amor no coração, elas preparam a invasão, cheias de felicidade, avançando através dos grossos portões: as mais doces bárbaras.

Maria da Graça dos Anjos já não agüenta mais. Por que tanto sofrimento? Porque tanta perseguição? Por onde ela passa as minhocas estão presentes. Belas e pertinentes enquanto chove, dessecadas e sanguinolentas quando a precipitação finda. O rastro dos animais está por toda parte. Nem cimento com pedra brita é capaz de resolver o problema. Atirem, façam elas se renderem, prendam todas, exorcizem, alguma coisa precisa ser feita!

Na última manhã chuvosa, Maria da Graça dos Anjos toma uma decisão: fica completamente despida, abre a porta de sua casa para as minhocas. Num instante a casa fica cheia, infestada. Maria olha os canteiros e percebe que estão vazios. Todas as minhocas entraram em sua casa e Maria da Graça dos Anjos resolve trancá-las. Feito isso, a mulher vai até o quintal e afunda suas pernas brancas como louça na lama escura e fétida do canteiro.

A lama logo toma conta do corpo de Graça dos Anjos. Ela se sente como se estivesse sendo acolhida numa roda de oração. Cada partícula de terra abraça seu corpo de maneira única. Passados cinco minutos, a mulher se encontra totalmente coberta. Na janela da cozinha estão as minhocas observando o acontecimento: umas mais altas, outras mais baixas, umas mais magras, outras mais gordas, todas atentas.

Gracinha dos Anjos não é mais Gracinha dos Anjos, transformou-se numa belíssima minhoca, grande e viçosa como as demais. Ela rasteja até a porta da cozinha, passa pela fenda entre porta e chão. Nessa noite há festa na casa de Maria, com muita graça. Hoje é dia de Maria! Todas as minhocas se uniram e agora ouvem Bossa Nova. Os outros membros da família estão no quintal, se afundando na milagrosa lama. Num instante o canteiro se tornará espécie de altar e todos os minhocões curiosos da cidade passarão a visitá-lo.

Amanhã é dia de chuva. Estou ansioso. Colocarei uma porção da lama milagrosa dentro de uma caixinha. Preciso ajudar na transformação de todos: uma lama idêntica será produzida em larga escala, até termos lama o suficiente para cobrir o mundo inteiro. Seremos lindos minhocões: rastejando, incomodando, descobrindo, misturando. Minhocões loucos por um metro quadrado de terra só nosso. A minhoca Maria da Graça dos Anjos é a maior latifundiária desse universo de terra úmida e fétida.