(As surpresas da vida são inúmeras, algumas belas, outras não. É fato que todas nos acrescentam. E machucam, machucam).
Os Sobreviventes de 2010, uma tentativa porca de ser Caio F.
Zanzibar, quem sabe, é uma boa opção, acredito. Ela me pergunta voraz com os cabelos caídos costas abaixo e eu respondo: Por que não? Como um trem desgovernado ela continua: você pode pelo menos mandar um cartão postal ou um email ou sinal de fumaça, mas um cartão postal, ah como eu desejo um cartão postal. Um cartão postal para que eu possa mostrar para os demais onde você foi parar, onde foi dar a sua vida, e você se perguntar: quem diria que viver iria dar nessa merda e as pessoas perguntarem: que cara louco, como ele foi parar num lugar desses e que todos morram de saudade, morram de saudade, não é isso que te importa? Todos morrerem de saudade de você, aquela angústia, aquela saudade que você tanto sentiu. Todo ser humano é um tiquinho sadista, meu bem. Gostamos de torturar. E você em Zanzibar quase um Idiana Diones, para que as pessoas possam dizer: ah como ele era bonzinho, como ele fazia as coisas direitinho, como ele era com-pe-ten-te, e ficasse na nossa boca aquele gosto amargo por não ter te dado a atenção devida, não ter te oferecido o que você precisava, essas coisas assim. Sem parar se abana com a capa do disco de Maysa e não para de fumar e não para de beber vodka nacional sem gelo e sem limão. Quanto a mim, a voz já desgastada pelo tempo, fico aqui mesmo pixando muros contra a privatização das empresas, um dia de santa outra de puta, um dia nublado outro de sol, um dia cinza outro bem colorido... Enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para pagar essa poltrona de couro autêntico onde vossa reverendíssima assenta a sua preciosa bunda e essas pilastras em detalhes carolíngios que já foram observadas por inúmeros historiadores de arte, pena eles não descobrirem que são falsas, mas eu as tenho como verdadeiras e ninguém me contradiz, digo que paguei, sei lá, cinqüenta mil e não paguei e não paguei. Meu Deus que aconteceu, que aconteceu, seu pau murcho e os bicos dos meus peitos que sequer ficaram duros, não saem da minha memória, não saem. Ocupam o lugar mais obscuro e fétido dela. Éramos diferentes, éramos melhores, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos mais, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou.
Cultura demais faz isso com o corpo da gente, filmes demais, livros demais, palavras demais, nunca consegui te possuir por inteiro. Parece que todas essas coisinhas, essas coisinhas que a gente diz que nos acrescentam, me distanciavam de você, me distanciavam, me distanciavam e eu me masturbava me masturbava e me masturbava, depois chorava com a cabeça enfiada no travesseiro, ainda com culpa, nojo ou vergonha, mas agora tudo bem, isso não é coisa pra gente se importar. Mas eu te dizia que o que acontece é que somos bons-intelectuais-frustrados-que-ainda-não-lutaram-por causa-alguma. O teu negócio é homem e o meu é mulher. Podíamos até formar um casal incrível com Greta Garbo e aquele mariado veado dela, não se irrite, não se fragmente, não tenho nada contra veados, queridinho, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada contra o que soe a: uma tentativa. Tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, uma coisa apertada, apertada. Tenho uma coisa que dói lá dentro, lá no âmago, no âmago. Tenho uma angústia excrucitante, excrucitantíssima. Um sufoco, uma sede, um peso. Eu só queria ser feliz, cara, gorda, feia, desavisada, ignorante, alienada, e fe-liz, fe-liz! Podia ter dado certo entre a gente, ou não, eu não sei bem o que é dar certo, acho que nunca vou saber, nunca vou saber, saber. Que lindo nós com Marx, Nitzsche, Sartre, depois Edgar Allan Poe, aquele sonhos tolos colonizados nas cabecinhas idiotas, ouvindo músicas francesas, gemidas, doídas, sofridas, eternas. Já li tudo cara, já tentei quântica drogas psicanálise ioga suicídio vôlei corrida astronomia umbanda boate gay meio ambiente, só sobrou esse nó no peito, e agora o que faço? Você vai curtir o seus nativos em Zanzibar e me mandará um cartão postal me contando de ontem à tarde, o passeio de barco. Deve haver algum barco por lá, imponente, pomposo, branco, branco como o futuro, leitoso e mergulhamos nessa brancura, nessa brancura. Deve haver algum tipo de dignidade nisso tudo, não me pergunte onde, pois eu te perguntaria também. Perdi minha alegria, anoiteci, deixei de inaugurar muitas situações, bem eu queria inaugurá-las, linda, fina, montada & sau-dá-vel, ah como eu queria! E as pessoas batiam a mão no meu ombro e diziam reage, reage, a vida é mesmo assim, num dia se perde, noutro se ganha, você é tão inteligente, tem grande po-ten-ci-al, é tão capaz, tão engajada, tão desenvolta, tão comunicativa, tão. Cadê a causa, cadê a luta, cadê o po-ten-ci-al? Claro que você não tem culpa, coração, estamos juntos, sempre estivemos juntos, você do meu lado, eu do seu lado, juntos pela eternidade – branca.
O que nos difere é você tem o verdinho da esperança brilhando nos olhos, você quer escapar da dor, porque dói. E eu não, quero senti-la como nunca senti nada antes, quero me dedicar somente a ela, até o fim dos dias, somente a ela. Não estou desesperada, não mais que antes, não se preocupe, meu bem, depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto e rivotril, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois caio no porre novamente, bato o carro, me sujo, me sujo. Não vou tomar nenhuma medida drástica, até porque não existe coisa mais triste que continuar sem ter fé nenhuma, insistir sem acreditar, lamuriando e esperando o sol nascer por detrás daqueles edifícios estranhos, meio tortos e eu aqui sozinha, sozinha. Ah, me faz um cafuné, toca meu coração com esses teus dedos longos e frios, me socorra, não me deixaram ser a coisa boa que eu era; e ela se aconchega no meu peito e me pergunta se não está feia demais, velha demais, acabada demais e eu digo que não mas ela não acredita e repete todas as perguntas e eu digo que sim e ela chora e ela lamenta, e ela me empurra e diz que estou sendo um insensível, eu tento entendê-la, mas não consigo, não consigo. Ela se debate, me manda embora e pede para que eu não esqueça do cartão de Zanzibar, que eu encontre uma pele branca e pura, que aconteça uma coisa bem bonita, bem maravilhosa, bem doce, que me faça acreditar nas coisas de novo, que me dê estímulo para viver, para que eu não fique no estado dela, de sapatão cansada com aqueles vincos na boca e aquelas olheiras horríveis.
E eu digo que não tem jeito, que já nos perdemos no meio da estrada sem mapa algum sem carona alguma a noite está caindo e só nos resta seguir no escuro, da noite, da vida. E tudo continua bem, bem, afinal, sobrevivemos.