sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Uma resposta: se hoje fosse o meu último dia eu iria para a balada do café triste


Se só me restasse um dia, eu o viveria como se ele não fosse o último. Nunca vivi pensando que teria todo o tempo do mundo pela frente. Nunca vivi desconsiderando o óbvio: a morte. Digamos que tenho medo de uma morte diferente do fim da vida, aliás, não sei, seguramente, se o que chamamos de fim da vida pode ser considerado morte. Acho morte um substantivo pesado demais para algo que, não sabemos, pode continuar. Não pretendo falar de planos paralelos, mas não posso ignorá-los simplesmente por não existir prova plausível da existência deles. Seria ignorância demais. Acredito em tanta coisa sem pedir prova alguma e o amor é uma delas.

O café, a vodka, os cigarros. O antiinflamatório, o chá, os legumes. Não existe o bom e o ruim, existem escolhas. Não me prendo a atos que a massa poderia considerar capazes de fechar com chave-de-ouro uma vida: esperar os amigos em uma sala vazia, correr para o shopping, andar pelado na chuva, entrar de roupa no mar, trepar sem camisinha. Nada disso para mim faz muito sentido. Desde que eu decidi, no meu âmago, não desistir de mim, qualquer atitude desesperada - como um ato reivindicatório ou uma expressão de recusa, tristeza ou melancolia - não é permitida. 

É claro que penso em um futuro. Em um. Não no. Não acho saudável desvincular conseqüência de causas: as coisas podem brilhar, mas só se trabalharmos nisso e para isso. E eu trabalho bastante inclusive. Nesse jogo com a vida estou ganhando com muitos pontos à frente e a minha crença nas pessoas é que me dá tanta força: falar dos seus anseios, preferências e dificuldades; da sua rotina árdua e massacrante; das garras do capitalismo e da falta de liberdade; dos preconceitos raciais e sexuais.

Portanto, se hoje fosse o meu último dia nada mudaria. Eu me sentiria pleno e feliz com o que fiz de mim. Ou com o que deu para fazer. Não me agrada pensar naquilo que não tive tempo de fazer, já que não somos insubstituíveis: outros emergem de seus lugares e, mesmo que inicialmente de forma torta e estranha, acabam tomando os trabalhos, as rédeas e colaborando para que tudo entre novamente em harmonia. E entrar em harmonia é algo inerente às coisas e às situações. Chega de achar desculpas e problemas: há sempre muito para se viver, mesmo se hoje fosse o último dia. Mas se hoje fosse o meu último dia eu iria para a balada do café triste.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Eleonora, a líder

Por Isley Borges e Carlos Gabriel

Eleonora Luiza da Costa. Esse era o nome dela. Sempre liderou discussões na câmara de vereadores, que mais parecia a “casa da mãe Joana”. Acreditava muito no que dizia a televisão, o rádio e a internet, tomava tudo o que diziam esses meios como verdades absolutas e gostava, também, de convencer as pessoas a aderirem à sua opinião e, graças a seu discurso, sempre conseguia tal proeza.

Tornou-se dona de um grande potencial de conhecimento, residido e elaborado em sua mente. Estudou Sócrates e aprendeu a falar bem. Transformou em Sofistas aqueles que não iam a favor de suas ideologias. Mudou-se para a cidade grande ainda pequena e adquiriu a supremacia burguesa aos bocados, ao assistir o pai vender produtos supérfluos com tamanha facilidade. Aprendeu bastante nessa época. Ainda carrega tecnologias linguísticas pertencentes a este período.

Certa vez, Eleonora convencera todos os habitantes da pequena São Dimas a destituírem o prefeito e exigirem novas eleições. Tudo porque a cidade fora denunciada anonimamente em um jornal regional. Acreditou em tudo o que os jornalistas falaram e tratou logo de disseminar a informação: panfletos, auto-falantes e microfones foram suportes para sua indignação. As palavras caíam sobre a cabeça dos Sãodimenses como gotículas geladas de chuva e enchiam de lágrimas os olhos das Marias e dos Joãos.
 
Indignada, convocou todos à frente da prefeitura e se pôs a protestar como nunca antes. Os cidadãos, também indignados, mas às vezes sem saber muito bem o que ali faziam, seguiam os passos da líder: “novas eleições! Novas eleições!”, eles gritavam alucinadamente. Tomavam parte de toda a frente do local numa tentativa de expulsar o prefeito de seu posto.

Quase invadiram o local, contudo não conseguiram. Não conseguiram porque alguém gritava para chegar à frente, para falar com Eleonora. Muito espantava aquele advogado que ela, tendo o conhecimento que tinha, não contestasse e não apurasse o que era dito pelos meios de comunicação. Tudo o que sabia era reproduzir conceitos rasos. O advogado trouxe à Eleonora a informação de que a denúncia feita no jornal e divulgada sem apuração era profunda falácia, mentira das deslavadas. As palavras, que caíam como gotículas de chuva sobre a multidão, congelaram-se ali.

Eleonora estava estagnada, tentando inutilmente se convencer de que aquilo não estaria acontecendo, de que as palavras deferidas pelo advogado eram falsas e que tudo não passava de um produto do seu inconsciente, um empecilho apenas. A mulher, robusta na aparência, ficou abatida em ao visualizar a papelada que o homem lhe entregava. Deu-se por conta, entrementes, da sua visão equivocada e superficial dos fatos que criticava outrora. Rendeu-se ao o que lhe diziam as indústrias da comunicação e tomava as informações como verdadeiras. Arrependeu-se em amargura por tomar consciência da quão leviana fora neste tempo. Aprendeu a retórica com perfeição, mas ignorou a profundidade do mundo.

sábado, 6 de agosto de 2011

O drama dos apenas "formados" na comunidade escolar

Pensaram que só os alunos anoréxicos iriam ganhar bronca? E os professores? Assim como existem alunos que não conseguem engolir a comida servida no tumultuado restaurante da educação, existem alguns professores que se recusam a fazer a comida, ou a fazem mal feita. Ninguém treinou direitinho esses chefes de cozinha? O que aconteceu e o que acontece? Esses péssimos profissionais de hoje eram os alunos que não queriam ou não conseguiam engolir a comida no passado? A comida que vocês estão servindo têm condições de ser engolida? Leiam...

Sabe-se que, na sociedade atual, é de extrema importância que tenhamos uma graduação. Há uma valorização do estudo e os níveis de dificuldades deste estão cada vez maiores. Profissionais ou “projetos de profissionais” se formam constantemente e se multiplicam de uma forma gritante. Freqüentar um curso de graduação não é tão difícil, o difícil é exercer a profissão de uma forma responsável. O assunto é muito amplo, então, focarei-me nos profissionais que fazem os cursos de licenciatura, os quais, às vezes, mesmo com muitos anos de profissão não conseguem repassar o conteúdo, ou até não o dominam, não possuem didática e não utilizam nenhum método agradável ou atualizado de ensino. São os que querem apenas o salário no final do mês e que não fazem o mínimo de esforço para conquistar a admiração dos alunos. Resumindo: o indivíduo que está presente na escola apenas porque ganhou licença para dar aulas, geralmente já tentou outras profissões e não obteve sucesso ou precisa sustentar-se ou sustentar a família.

A comunidade escolar não funciona muito diferente da sociedade. Na escola, as pessoas são julgadas, testadas, pré-conceituadas, discutidas, aceitas ou não. Penso que, depois que um professor entra em uma sala de aula, ele jamais sairá o mesmo: esse ato acarreta a aquisição de uma bagagem de conhecimento e experiência inenarráveis. Dizer que falta de experiência influencia de maneira significativa o desempenho do professor não é um argumento muito louvável, já que temos vários exemplos escancarados de professores que acabaram de se formar e não são apenas “formados”. Da mesma forma, temos exemplos de professores que já estão prestes a se aposentarem e não apresentam sinais de experiência e maturidade quando estão no comando da classe. Os “formados” se consideram detentores da verdade e não mediadores do conhecimento, e, por se denominarem assim, não conseguem harmonia no ambiente profissional. O resultado do que foi dito por último é: pouco aproveitamento das aulas e muita insatisfação por parte do aluno e do próprio professor, que não consegue atingir seu objetivo (fazer com que o aluno aprenda algo, pelo menos eu acho...).

As maiores responsáveis por esses “formados” são as universidades, que, no lugar de ensinarem didática, optam por perder tempo com discussões teóricas que quase sempre se baseiam em conceitos sem nenhuma comprovação científica, adotando uma política tradicionalista, extremista e que deixa de propor para impor. Isto está arraigado nas maiores universidades brasileiras. Os “robozinhos” que aceitam essa formação desnutrida e não procuram mudar os métodos de aplicação de conteúdo, expõem em sala de aula uma visão pouco objetiva e ideológica do mundo, não dominam sequer o básico e ignoram métodos para se passar o conhecimento adiante.

O mais agravante é que o governo, através de leis instáveis, sem bases sólidas (como a Lei 100, por exemplo), efetiva profissionais qualificados ou não, achando que ajudará a escola, organizando o quadro de professores e livrando a mesma de problemas gerados pela contratação de novos profissionais. Vamos analisar: é melhor um contratado que domina o conteúdo, possui controle da sala, tem o carinho dos alunos, ou o efetivo desnutrido nos quesitos humanidade, socialização, afetividade e respeito ao aluno? O governo é mesmo muito complicado... Não percebeu que a solução para o problema começa com a valorização salarial do profissional, visto que, o salário serve de estímulo pessoal e para aumento da qualificação.

Em consideração a tudo isso, proponho uma reflexão a cada um de vocês professores. Será que estou satisfeito em meu ambiente de trabalho? Eu gostaria mesmo de estar aqui lecionando? Para mim basta o diplominha ou o que importa é o crescimento pessoal? Reclamar dos constantes projetos enviados pelo governo e do meu baixo salário resolverá meu problema? Perguntas assim deveriam ser feitas por vocês todos os dias antes de encararem uma classe cheia de alunos. Torço para que os “formados” de plantão acordem para a realidade e sintam a tamanha responsabilidade que carregam. Você não deve pensar que é só servir a comida e pedir que eu a mastigue, antes disso, deve prepará-la colocando ingredientes indispensáveis, como: conhecimento, boa vontade, amor, dedicação, responsabilidade... Se a comida estiver destemperada, logicamente não irei mastigá-la, tampouco engoli-la, e então, você terá que limpar a sujeira, só que dessa vez sem reclamar.

Já está mastigado, basta você engolir

“Hoje quero levá-los a uma reflexão: há meses atrás fiz uma cirurgia de risco, com um pós-operatório um tanto complexo, e por isso, sem a ajuda de minha irmã, talvez eu não pudesse estar aqui hoje. Ela me tratava como um bebê, comidinha na boca, horários de remédios e outros cuidados. Em todo esse período, ela teve muita paciência para me ajudar, e eu queria ser ajudada. De que adiantaria se ela trouxesse a comida e o remédio e eu, por algum motivo, me recusasse a engolir? O esforço dela seria em vão.”

O trecho acima, foi dito em sala de aula, por uma de minhas professoras, e, baseado nisso, penso o que vem adiante:

Os alunos ganham durante todo o ano a matéria mastigada e são avaliados de diferentes formas. A escola oferece a eles cursos de aprofundamento de estudos, biblioteca com livros de qualidade, projetos de grande aproveitamento - caso houvesse um mínimo de interesse. Eles ganham a comida na “boquinha”, mas, na maioria das vezes, nem com toda a equipe pedagógica fazendo “aviãozinho”, eles querem engolir o alimento que, neste caso, é a matéria.

O programa de ensino não pede que o alunado coma toda a comida, ele pede que comam a metade dela, o que é uma injustiça, já que no vestibular terão que comer toda a comida e a sobremesa... Alguns alunos se sentem cheios e com indigestão comendo vinte por cento da comida do prato, outros comem a metade, e existem aqueles que guardam a comida na geladeira pra comer no próximo ano. Analisem comigo: o restaurante funciona durante duzentos dias, no mínimo quatro horas e meia por dia, e ainda temos alunos que não conseguem comer nem a metade dessa comida.

A solução seria aumentar o tempo de funcionamento do restaurante? Ou seria melhor se colocassem menos comida no prato? Ou ainda, se os professores comessem um pouco dessa comida para os alunos? Podemos também pensar na possibilidade de permitir que a comida seja guardada durante anos na geladeira ou até que seja descartada (como acontece muitas vezes...). Enfim, o governo está interessado mesmo é se seus funcionários estão servindo essa comida, se ela é engolida, isso não importa muito.

No final do expediente, quando o restaurante está quase sendo fechado, órgãos de defesa do corpo discente, constantemente procuram os responsáveis pelos diversos setores do restaurante e, nesse momento, são feitas queixas, pedidos, alguns imploram, choram e chegam a perguntar: “Meu filho não engoliu a comida, o que você pode fazer para ajudá-lo?”. O governo, infelizmente, obriga os professores a darem um tapa nas costas desses engasgados. Os espertos acabam de engolir e ficam com a comanda limpa para ser usada novamente, os outros, ao invés de acabar de engolir a comida, lançam-na no rol do restaurante.

Até então, sem problemas. Aliás, sem problemas não... No ano seguinte, quem é que vai limpar a sujeira que ficou no rol do restaurante? O pior é que sãos os professores, profissionais obrigados a limpar a sujeira e abrir a mente do aluno para que, ao final do ano que se inicia, ele não seja tão negligente quanto foi no ano anterior. Trabalhos contra indigestão são feitos durante todo o período letivo, mas infelizmente não surtem muito efeito. Afinal, nenhum professor gosta de ver seu aluno comendo rapidamente, pedindo os outros colegas para ajudar a comer a comida do prato e, muito menos, se engasgando.

Assim, o trabalho neste tumultuado restaurante segue num ritmo razoável, onde alguns têm um ganho nutricional incrível e aproveitam o máximo que podem da comida que é servida. Outros comem o que lhes interessa, sem se dar conta do desperdício que há durante um ano inteiro. E não podemos nos esquecer daqueles que não comem nada e se tornam raquíticos, desnutridos em matéria de conhecimento.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Três dias após a entrada do sol em Áries

(Um conflito entre o cisne branco, o dragão e o cisne negro)
à mamãe Luciana e ao eterno Caio


I – Uma oração para o dia vinte e seis

Senhor, abençoe todos aqueles que lutam, sem desistir, sangrando muito, incansavelmente, por qualquer coisa, por coisa qualquer. Neste vinte e seis do mês três, que as lágrimas possam transformar-se em sorrisos e, que o vento que dança e balança as folhas daqueles pés de girassóis, balancem os cabelos pretos e a inocência de mamãe. Que o senhor traga paz e descanso aos velhos corações, já que, a velhice é a única doença que não tem cura. Que aquilo que, com descuido, chamamos de amor, não se banalize e não seja utilizado pelos que amam a falsidade. Olhai pelo pintor, pelo vendedor de picolés. Reconforte a prostituta, que enfrenta uma rotina triste e perigosa. Cuida daquele que ama o próprio e não ama si mesmo. Dê comida a quem tem fome. Dê água ao sedento. Neste vinte e seis, que o sol nasça mais quente, que o gramado reflita o verde mais esperança, e que, aquele executivo que já acorda cansado possa ouvir o mais doce canto dos pássaros. Que as pessoas, todas elas, se libertem das redes virtuais e façam o uso da boa educação no cotidiano. Que todos tenham a oportunidade de se alfabetizarem e assinarem seu nome com orgulho. Que ninguém seja excluído ou se torne alvo de preconceito. Deus, olhai para nós, que queremos viver o amor da sua forma mais intensa, para nós, que não sentimos há muito tempo o cheiro de mel & girassóis. Para os soberbos, para os que fingem ser algo que não são, ou desejam ter uma vida diferente daquela que possuem, não dê força, nem sol, nem quentura, nem clareza nenhuma. Nesse fim de março, nesse vinte e seis, nessa entrada póstuma do sol em Áries, afasta todo o mal de mim e daquelas pessoas que amam do fundo do coração. Não digam Amém. Apenas peçam. Às vezes, pedir é a única coisa que ainda pode se fazer.

II – A respeito da essência do cisne branco

Há trinta e cinco anos, o dia vinte e seis acordara da melhor forma possível. Deus tinha enviado o sol mais luminoso. Tudo estava diferente do que está: as coisas eram traçadas por contornos mansos e nada feria como fere agora. Nascia Luciana, e, com ela, para morar dentro de seu coração, um típico cisne branco: clássico, extremamente sensível e de contornos singelos, como os que traçavam as coisas no dia de seu nascimento. Um cisne diferente de todos aqueles que haviam estreado até aquele um mil novecentos e noventa e seis. Aos dezesseis, fez cara de princesa da Disney, de Cinderela, e até hoje diz que não foi culpa dela. A principal causa do sofrimento do cisne é a sua brancura. Sua brancura o impede de desafiar situações interessantes, de levantar novas bandeiras, de pisar em novos pisos, de “apostar em cavalos diferentes”. O cisne branco contenta-se com a simplicidade, com a explosão instantânea da beleza do lago. Ele tem medo de contornos duros, contornos duros podem ferir. O cisne branco tem rotina. Flutua sempre pelas mesmas águas, ouve sempre os mesmos sons e, constantemente, sente o cheiro de mel & girassóis que todos aqueles que amam verdadeiramente desejam sentir. A mesma brancura que priva o cisne de experiências estarrecedoras, confere-lhe extremo pudor, bom gosto e afeto. Todos se sentem acolhidos pela sua brancura. O cisne branco “completa” a beleza da paisagem. O cisne branco não possui grandes vaidades, não flutua de maneira arrogante, não faz questão de se mostrar. É discreto. Discrição é a principal característica dessa ave. O cisne branco mora com Luciana e não quer, de modo algum, abandonar seu habitat.

III – O cisne branco e o dragão

Não é surpresa para você, mamãe, que tenho um dragão que mora comigo. Um dragão, teoricamente, não poderia ser amigo ou manter qualquer relação com um cisne branco. O dragão que mora comigo insiste em querer acinzentar a brancura iluminadora do cisne que mora contigo. O dragão não é sensível, não age com o coração, não se apega à ninguém, não sofre por amor. O dragão é uma daquelas criaturas que deveriam viver sozinhas, isoladas do caos urbano, da UFU e do Jornalismo. 
O modo grosseiro como o dragão solta o fogo das ventas pode queimar as penas do seu cisne. O dragão que mora comigo só tenta fortalecer o cisne que mora contigo. O dragão não contenta-se com a beleza do lago ou com o cantar doce dos pássaros. O dragão não desfila, o dragão nunca se inaugura. Te peço desculpas pela não-estréia, pelo não-abrir das cortinas, apesar de que, eu espero sempre as palmas, ou melhor, o balanço das asas do cisne branco.

IV – O dragão deseja um cisne negro

Muitas, incontáveis vezes, tive vontade de colocar-me de frente para o cisne branco. Seria muito mais interessante um cisne negro. Da cor da noite. Um cisne desapegado do conceito de limite, que flutuasse por diferentes águas, que sentisse diferentes aromas, que não se abalasse com a presença de um segundo cisne. Um cisne um pouco mais forte que o branco. Só desejamos isso, eu e o dragão que mora comigo, porque preocupamos com a felicidade e a paz interior do cisne. Tememos sua fragilidade. Tememos sua rotina. Tememos sua inocência. Tememos que ele morra como nasceu, todo branco, sem mancha negra alguma. Manchas negras, aquelas que nos marcam quando perdemos um grande amor ou quando morre um parente próximo. Tememos que o cisne branco morra sem ter vivido, apenas tendo existido.

V – A morte do dragão e, por fim, a solução

Solucionei a problemática: mamãe Luciana continuará morando com o cisne branco e eu, eu, com um cisne negro. Destruirei o tal dragão, habitante do meu coração e vísceras. Conviverão dois cisnes, cada qual com uma personalidade, um ajudando o outro. Um contrato bastante justo, mamãe: você continua com sua leveza e fragilidade e eu atenuo meus duros contornos e insensibilidades. Você será o dia, eu serei a noite. Os dois cisnes sentirão para sempre o cheiro de mel & girassóis, pois ambos amam da forma mais pura e verdadeira. Sinta, agora, o encontro dos dois cisnes e ouça a minha voz, abafada, desejando a doçura mais doce, por todos os anos de nossas vidas.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Uma carta para além dos muros: 06.07.1992 - 06.07.2011



"Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor:
onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
em que direção se vai?"
(Adélia Prado: O coração disparado)

Não sei bem a maneira mais correta, ou mais coerente, ou mais respeitosa de me dirigir ao Senhor numa comunicação epistolar. No meu íntimo sei bem como deve ser a abordagem, mas em ocasiões tão especiais, em um dia como o de hoje, sinto-me um tanto confuso. Não se assuste: nessa carta tentarei não ser demasiadamente pessoal. Serei objetivo, direto, falarei de fatos, da minha vida ou não, da minha história ou não, de medos e deslumbramentos, de caminhadas matinais. Exatamente hoje, no sexto amanhecer de julho.

Senhor, nasci contemplado, com uma família linda que, desde meus primeiros suspiros, me encheu de amor, carinho, mimos e presentes. Uma mãe que, desde os três dias póstumos à entrada do sol em Áries, resolvi chamar de cisne branco. Delicada, sensível, compreensiva, inteligente. Um pai, que nunca consegui definir muito bem a personalidade. Talvez um gato negro. Jacaré. Cão. Não sei... Não sei nem por onde ele anda, se faz três refeições diárias, se vê pássaros assentados nos fios dos postes. Avó paterna: me “estragou” e me “estraga” até hoje. Avô paterno: grisalho, falante, antenado. Os outros dois, maternos, nunca fizeram grande diferença, nunca foram próximos de mim, nunca me amaram de forma muito expressiva – o que não significa que eles não me amem, talvez tenham apenas dificuldade em demonstrar isso. Um irmão, inteligentíssimo, contudo secretíssimo.

Senhor, Jesus, nasci também com um dragão aqui dentro. Inquietação. Alma de jornalista.

Não peço nada extraordinário. Peço luz, paz, tranqüilidade. Comida pra quem não tem, cultura e arte. Liberdade. Peço, com veemência, mais sabedoria e respeito: comigo, com todos os seres humanos. Que os pastores parem de pregar absurdos, que as pessoas não sejam impedidas de amar, que escolhas sexuais e religiosas não façam diferença e não julguem maior ou menor grau de moralidade. Que os políticos não gastem à toa nossos impostos e que, nós, na hora de votar, possamos escolher melhor e, no mínimo, ter opções plausíveis. Tudo isso que peço depende de nós, todos nós, mas depende também do Senhor.

Tento não ser pessoal, tenho muito medo de espantá-lo, fazê-lo desistir da leitura dessa carta. Peço por todos, sempre fui altruísta.

Aos meus dezenove, não sei muito mais que a minha própria fome. Nunca amei – embora, às vezes, fico em dúvida ao falar isso – e nem nunca sofri por e de amor. Fico confusíssimo, não sei bem distinguir (numa relação entre eu e uma pessoa que não é da minha família pelo qual sinto desejo carnal) amor, sexo e paixão. Como diria Caetano Veloso: “isso que chamamos de amor, esse lugar confuso entre o sexo e a organização familiar”.  Mas peço, com fé, que todas as pessoas, um dia, qualquer deles de sua vida, possam amar. Que tenham essa possibilidade, que sejam correspondidas e menos frustradas.

E por último, numa tentativa de ser menos prolixo, imploro o livramento do ciclo seco: esse espectro que ronda o Brasil, talvez o mundo. No ciclo seco apenas se age, sem sentimentos, sem grandes expectativas. No ciclo seco não se espera muito de nada nem de ninguém, aliás, não se espera. O ciclo seco não é feio nem bonito, bom ou ruim. Ele não se interessa por nada, fica a completa indiferença para todos os acontecimentos do país: o caos do governo Dilma, o despreparo dos professores, das escolas, os assaltos, os ônibus quebrados. E não adianta nos livrar do ciclo seco, Jesus, o Senhor precisa nos livrar dele e dos que fazem girar o processo-ciclo-seco.

O que fica, após os dezenove-invernos, é um filtro cada vez mais seletivo. Que filtra falsidades, najices, mesquinharias, conversinhas atravessadas, pessoas fúteis e pessimistas, ciclos secos. Filtra muita coisa, passa por ele só os bons sentimentos. E eu agradeço por ele, Senhor. E agradeço pelo caminho florido em que venho andando, sendo protegido. Obrigado.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

"Na terra do coração"


Artéria Aorta, veia cava superior, artéria do pulmão esquerdo, artéria do pulmão direito, veias do pulmão esquerdo, veias do pulmão direito, veia oblíqua da aurícula esquerda, aurícula direita, apêndice auricular direito, ventrículo esquerdo, ventrículo direito, veia cava inferior, zona apical. Tudo humano demais.

Meu coração é um canteiro de obras, repleto de pedreiros, serventes, engenheiros: todos musculosos, fortes, viris. A última coisa com a qual eles estão preocupados é com um desenvolver rápido da obra. Todos eles assoviam, incomodam e gritam com as mulheres de ancas largas, vestidos estampados e cabelos-alisados-por-escovas-progressivas que se arriscam a passar próximas ao portão principal. Por aqui há demasiada desorganização e recipientes com água parada, paraíso para os mosquitos da dengue.

Meu coração é o cenário ideal de uma tragédia. Sombrio, escuro, de repartimentos desconhecidos. Por aqui é possível se cometer variados crimes e pecados. O público percebe claramente os três atos, vagamente delineados por um fechar de cortinas de fino filó, já desgastado pelo tempo. Ora aplaudida ora vaiada, a tragédia já está em cartaz há 18 anos-e-onze-meses.

Meu coração é a redação de um jornal do interior. Um jornalista, apenas ele, sozinho, faz pautas, textos e fotos de toda a edição. Tudo numa máquina de escrever. Um detalhe: ele ganha mal e ainda não fez seu curso de datilografia. Cafés e cigarros permeiam seus dias e suas noites. Ele, constantemente, pensa deixar a profissão, contudo acredita que, de alguma maneira, possa mudar o mundo.

Meu coração é um botequim da Lapa, que oferece bolinhos de bacalhau e cerveja bem gelada aos clientes. O garçom que trabalha nesse botequim é comunicativo e conquista a amizade de todos os clientes. É cheio nas noites de sexta-feira. Vazio e triste nas noites de domingo. A fachada e colorida e repleta de girassóis.

Meu coração é o principal entrevistado do Programa do Jô, em todas as noites, de todos os dias, semanas, meses, anos. O sexteto toca o Hino da Alegria, de Beethoven e me recepciona incrivelmente bem. As pré-estrevistas simplesmente não são mais feitas, já que tudo anda óbvio demais.

Meu coração vive uma coisa de cada vez. De sandálias baixas ou de salto quinze, ele desperta toda manhã, de sol ou de chuva, de segunda ou de sábado. Ele vive intensamente a escassez de dinheiro no final de todo mês e, muitas vezes, está mais faminto e sedento que o mendigo mais sedento e faminto de todo o mundo. Defende-se das mazelas da vida como uma prostituta já agredida muitas vezes; como um tigre que cuida da sua cria; como um antigo milionário que perdera tudo nos cassinos de Miami.

Ele não é de ninguém.

domingo, 12 de junho de 2011

O tal doze-de-junho


Carências jamais supridas. Traumas de infância. Medo de perder. Vontade de guardar o outro numa caixinha de madeira espessa dentro da última gaveta do criado mudo. 1-2-3-ligações diárias não atendidas. E-mails enviados em vão. Almoços solitários de domingo-cinza-chuvoso. Necessidade de autoafirmação. Redes sociais. 

Não sei se fui eu que endureci ou se são as pessoas que estão moles demais. Uma transa é uma transa. Um namoro é um namoro. Ligações são ligações. Escrituras ainda são APENAS para imóveis, graças a Deus. 

E neste 12 de junho, em plena madrugada, percebi-me pensativo acerca do dia dos namorados e concluí que estou cada vez mais feliz e realizado com minhas escolhas. Eu gosto é da liberdade escancarada, talvez até mais que Sartre. Acordar às três da tarde de um domingo-romântico-ensolarado e comer dois salgados da padaria que fica logo ali. Não receber ligações quando estou fazendo minhas refeições e curtindo o final de semana com meus amigos/familiares/etc. Não ter que gastar dinheiro no dia doze-de-junho comprando presentes caros e ridículos que só servirão para serem devolvidos nos términos de relacionamento. Não ter que preocupar com o sexo quase obrigatório do dia doze-de-junho. Poder ficar na internet, sem restrições de horários, todos os dias, semanas, meses anos, décadas e séculos e oceanos. Usar o dia doze-de-junho para colocar minhas leituras em dia. Não viver o doze-de-junho. 

Não tenho a pretensão de influenciar ninguém. Isso foi só um "recorte" da minha humilde opinião. Feliz doze-de-junho, pessoal!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O homem que sonhava


Sonhei que estava sonhando que o mundo era um tiquinho mais humano, solidário e justo. Sonhei que estava sonhando que eu havia nascido em uma cidade bem menor do que a que eu moro hoje. Sonhei que estava sonhando também que, por mais difíceis que fossem as situações meu coração havia sido inaugurado e recheado de amor. Sonhei que eu estava sonhando com um beijo amoroso e um abraço quente da vovó e do vovô (que moravam na cidade que eu sonhei que estava sonhando que eu tinha nascido). Sonhei que estava sonhando que, naquele tempo - da cidade que sonhei que eu estava sonhando que eu tinha nascido - eu tinha papai, mamãe, irmão, avó, avô, tia, primos e todas aquelas pessoas que a gente sonha que um dia sonhou que teríamos na família. Essa minha tentativa-urgente de expressar o que sonhei que eu estava sonhando ficou um pouco confusa. Vou tentar melhorar:

Sonhei que eu sonhava que tudo doía e me fazia sentir saudade. Sonhei que eu sonhava que chorava por tudo o que fui, por tudo o que eu sou e por tudo o que eu tentei ser e não consegui. Por todos aqueles pedidos que fiz e, por algum motivo, não foram atendidos. Pela renúncia. Por todos aqueles sentimentos que eu queria sentir e, totalmente por incompetência ou desleixo, não foram sentidos. Por todo amor que dispensei e não me foi retribuído. Pelo respeito, dignidade e consideração - detalhes cada vez mais perdidos por grande parte das pessoas que tentam se encontrar em redes sociais: gélidas, vagas, superficiais (as redes, as pessoas). Sonhei que eu sonhava que eu estava sentindo muito medo de embarcar em uma viagem que talvez não teria volta: por que nós, humanos, somos mesquinhos e temos medo de adentrar o desconhecido, desbravar o novo, "dar a cara pra bater". Sonhei que eu sonhava muitos sentimentos, e esse era o grande problema: sentimentos não devem ser sonhados - ainda mais sonhados que sonhamos - devem ser abraçados, sentidos, tornando-se parte de nós.

Sonhar é acordar para dentro. Então, acordei do sonho do qual eu estava sonhando: agora estou mais liberto e apenas sonho. Não tenho o (des)conforto de sonhar que sonhava como antes. Sonhar que se estava sonhando é algo muito distante, feito pó que quando jogamos para cima: brilha, confunde, perturba, de-sa-pa-re-ce! Enfim, tudo agora está mais concreto e mais fácil de decifrar e compreender.

Sonhei com uma possibilidade de amor. Não com uma possibilidade boba, fútil, singela. Uma possibilidade daquelas que Deus coloca no caminho da gente como se estivesse dizendo que "dessa vez é para dar certo". Tratei essa possibilidade como um objeto que me pertencia e eu daria o destino necessário, conveniente. Todas as vezes que me sentia ameaçado ou mal amado, eu entrava no quarto, abria a primeira gaveta do criado-mudo e, lá de dentro tirava uma caixinha. Dentro da caixinha estava guardada a tal possibilidade. Dias atrás, sonhei que o quarto pegara fogo: o quarto, o criado-mudo, a primeira gaveta, a caixinha e, logicamente, a possibilidade. Até tentei ligar para ela. Inclusive, encontrei o número na agenda do celular. Claro, ninguém atendia. Desde então não me apego mais a possibilidades, principalmente quando são possibilidades-melosas-impossíveis-bobas-chatas-repetitivas-de-amor.

Já sonhei com o futuro e juro que me surpreendi. Já sonhei com pessoas que eu amava e com inimigos. Com fórmulas de física e nomenclaturas da química orgânica. Até com livros que eu nunca havia lido eu já sonhei. Tenho medo de quebrar esses sonhos: são como bebês, diamantes, cristais. Sonhei e continuo sonhando. Por detrás dessa vidraça, observando tanto concreto, poucas árvores, alguns aviões e contemplando as cores do sonho da maneira mais absoluta que alguém poderia fazê-lo: sonho. Só peço que não me despertem. Nunca.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Conflitos de um quase Jornalista



Eu sempre quis ser jornalista. Sempre. Desde que eu assistia o MGTV 1ª Edição – com aquela apresentadora loira e linda, lembram dela? Bem pequeno e já desejava a cadeira da loira (que ficava atrás daquela bancada gloriosa, à frente das belas fotos aqui da nossa região). Sem falar de Fátima Bernardes e Wiliam Bonner, que me deixam em êxtase até hoje.

Vocês não imaginam o quanto de bullying sofri da minha família com essa minha idéia. Meu filho, a santa Fulana de Tal vai iluminar seus caminhos, dizia minha mãe. Jornalista é como jogador de futebol: pouquíssimos se dão bem, completava papai. Tem tanta profissão melhor, que dá um futuro seguro, acrescentava vovó. Uma tia minha – daquelas bem chatas, gordas, que consideram você uma criança mesmo depois de alguns centímetros de barba crescida – insistia para que eu prestasse um concurso da Petrobrás ou do Banco do Brasil... Jornalismo era pra gente vagabunda, que não quer nada com a vida.

Para arruinar ainda mais minha situação, quando eu estava no segundo ano e quase conseguindo convencer minha família de que o Jornalismo é um bom curso e que eu poderia me dar bem na profissão, o Gilmar “encanou” de tirar a obrigatoriedade do diploma de Jornalista para se trabalhar. Fiquei desesperado! Mamãe dizia aos quatro cantos que agora qualquer um poderia ser Jornalista, e eu a retrucava, dizendo não, não, não. Imagine a Maria jornalista, mamãe? Ela não sabe nem concordar os verbos, não lê, não se informa, nem paragrafar ela sabe.

A não exigência do diploma não me desanimou, a titia gorda também não. Mamãe, papai e vovó, muito menos. Fiz minha inscrição no vestibular para Jornalismo. Cheguei em casa com medo de ser expulso, ter que dormir na rua. Pelo menos vai continuar estudando, dizia mamãe. Terá que passar bem colocado, paguei um absurdo nessa inscrição, completava papai. Fiquei satisfeita, pelo menos vai estudar na UFU, acrescentava vovó. Titia se animou e vivia me perguntando quando me veria no Jornal Nacional. Coisa chata.

Na época do vestibular: dois dentes cisos nasceram, fortíssimas crises de vômito, corpo infestado por furúnculos, pressão arterial oscilando demasiadamente. Pois é, passei. Pensei que os ânimos iriam se acalmar, que a vida ficaria mais colorida e gostosa de viver, que eu teria tempo de fazer caminhadas, leituras que estavam à espera, sair com amigos, viajar. Ah, doce ilusão!

Toda segunda, resenha. Toda terça, atividades da Cida Ottoni. Toda quarta, divagações sociológicas do Rodrigo. Toda quinta, Filosofia em Alemão com o Jakob. Toda sexta, relatórios da Sandra e correria, muita correria, com a Ana. As pessoas – agora todas elas, não só minha tia gorda – me irritam, perguntando quando estarei apresentando o Jornal Nacional (ninguém entende que o Telejornalismo é só uma disciplina do curso).

Mamãe agora vive imprimindo e guardando tudo o que eu escrevo. Papai torce para que eu trabalhe com jornalismo esportivo (vou deixar que ele sonhe um pouquinho). Vovó ficou traumatizada com a morte dos jornalistas que estavam no Morro do Alemão e vive tentando me convencer a mudar de curso. Minha tia gorda? Vamos ver se vocês adivinham... Quer me ver no Jornal Nacional por toda lei – mas disse que se satisfaz me vendo no Jornal Hoje ou no Jornal da Globo.

O jornalismo é viciante. É inesperado. É líquido demais. Não há dinheiro no mundo que pague a ansiedade em uma reunião de pauta, a emoção de uma matéria escrita por você publicada em uma primeira página, a possibilidade de auxiliar os mais humildes, de consertar estradas, de denunciar corrupção, de fazer justiça.

Fazer o que manda o coração da gente é a melhor coisa que existe.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Falta-de-bom-senso: o vírus


As pessoas estão contaminadas. Contaminadas por um vírus destruidor... Muito mais que o da hantavirose, da herpes e da hepatite. Psicológico. Isso mesmo, ele é psicológico. A doença desse vírus chama-se Falta-de-bom-senso. A transmissão dá-se pelo convívio com pessoas mesquinhas, oportunistas e desocupadas. O prognóstico é maligno: deteriora totalmente a dignidade do infectado. O diagnóstico é obtido pela pesquisa das partículas virais na saliva das antas podres e pobres (de espírito), capazes de destruir o sonho alheio.

A doença é crônica, só para constar.

terça-feira, 8 de março de 2011

Maria da Graça dos Anjos e as suas duas naturezas


[Para Lucilene Gomes Diniz, minha madrinha, que rezou pelo desaparecimento das minhocas que insistiam em invadir sua casa]

As minhocas ensaiam sua saída dos canteiros da casa de Maria da Graça dos Anjos. São grandes, determinadas, majestosas, não respeitam o espaço da família. Saem inescrupulosas do solo encharcado numa marcha frenética para o local que não as pertence. Estão por toda a parte, uma depois da outra, e a fila se desenvolve, uma mais disposta que a outra. Maria da Graça agora está no quarto e nunca espera a chegada das tais minhocas. Ter minhocas entrando casa a dentro é coisa desagradável.

Os anelídeos da classe Oligoqueta, ordem Haplotaxida, distribuídos pelos solos úmidos de todo o mundo, insistem em complicar a vida de Maria da Graça dos Anjos e de sua família. A matriarca já fez de tudo, basta caírem as lágrimas de Deus e as minhocas ressurgem todas. É como se os olhos do mundo estivessem tentando filmar uma realidade muito banal, muito inútil. Graça não entendia o real objetivo das minhocas. Com amor no coração, elas preparam a invasão, cheias de felicidade, avançando através dos grossos portões: as mais doces bárbaras.

Maria da Graça dos Anjos já não agüenta mais. Por que tanto sofrimento? Porque tanta perseguição? Por onde ela passa as minhocas estão presentes. Belas e pertinentes enquanto chove, dessecadas e sanguinolentas quando a precipitação finda. O rastro dos animais está por toda parte. Nem cimento com pedra brita é capaz de resolver o problema. Atirem, façam elas se renderem, prendam todas, exorcizem, alguma coisa precisa ser feita!

Na última manhã chuvosa, Maria da Graça dos Anjos toma uma decisão: fica completamente despida, abre a porta de sua casa para as minhocas. Num instante a casa fica cheia, infestada. Maria olha os canteiros e percebe que estão vazios. Todas as minhocas entraram em sua casa e Maria da Graça dos Anjos resolve trancá-las. Feito isso, a mulher vai até o quintal e afunda suas pernas brancas como louça na lama escura e fétida do canteiro.

A lama logo toma conta do corpo de Graça dos Anjos. Ela se sente como se estivesse sendo acolhida numa roda de oração. Cada partícula de terra abraça seu corpo de maneira única. Passados cinco minutos, a mulher se encontra totalmente coberta. Na janela da cozinha estão as minhocas observando o acontecimento: umas mais altas, outras mais baixas, umas mais magras, outras mais gordas, todas atentas.

Gracinha dos Anjos não é mais Gracinha dos Anjos, transformou-se numa belíssima minhoca, grande e viçosa como as demais. Ela rasteja até a porta da cozinha, passa pela fenda entre porta e chão. Nessa noite há festa na casa de Maria, com muita graça. Hoje é dia de Maria! Todas as minhocas se uniram e agora ouvem Bossa Nova. Os outros membros da família estão no quintal, se afundando na milagrosa lama. Num instante o canteiro se tornará espécie de altar e todos os minhocões curiosos da cidade passarão a visitá-lo.

Amanhã é dia de chuva. Estou ansioso. Colocarei uma porção da lama milagrosa dentro de uma caixinha. Preciso ajudar na transformação de todos: uma lama idêntica será produzida em larga escala, até termos lama o suficiente para cobrir o mundo inteiro. Seremos lindos minhocões: rastejando, incomodando, descobrindo, misturando. Minhocões loucos por um metro quadrado de terra só nosso. A minhoca Maria da Graça dos Anjos é a maior latifundiária desse universo de terra úmida e fétida.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Eu, o dragão e o Jornalismo





O texto que segue foi produzido por mim, na primeira aula de Leitura e Produção de textos 1, com a Profª Drª Maria Aparecida Resende Ottoni. A proposta era a produção de um texto de autoapresentação que rompesse com a estética costumeira.

Um dragão mora comigo. As oscilações de meus sentimentos me confundem e me incomodam, não como se ele morasse comigo, mas como se ele morasse dentro de mim. Não tenho o direito de me sentir ofendido ou agredido: se ele mora comigo, foi por eu ter permitido. Vezenquando, o fogo que sai das ventas do dragão-que-mora-dentro-de-mim me corrompe, me queima e destrói todo o meu interior e tudo em que eu acredito.

Na minha mente cheia de obscuridades, insanidades e esquisitices, mantenho em um lugar bem clarinho a doçura de minha mãe, que desde cedo me despertou o interesse pela leitura e escrita. Tenho poucos amigos e raras notícias de meu pai. Recebo constantes ligações de meus avós paternos, talvez como uma forma de desculpa pela ausência de quem, teoricamente, deveria se preocupar comigo.
        
Só percebi a quietação do dragão uma vez. Uma única vez: depois da notícia de minhas aprovações em quatro universidades federais. Antes de receber os tais comunicados ele me agredia demais, se debatia e sua cauda conseguia até alcançar a boca de meu estômago. Quando o tal bicho está tranqüilo, exala um aroma aveludado de almíscar; já quando é o mal-humor que toma conta, não consigo descrever que cheiro sai. Acredito que o meu interior é o habitat perfeito para esse animal, com esse comportamento. Porém, para os dragões, harmonia nunca é aceitável, eles gostam de conflito, desconforto, da dor (aguda e crônica), da insatisfação, das trevas, da desilusão.

Busco aceitação e amor no coração. Em todo tipo de relação (de amizade, amorosa ou as outras que acabamos por tecer), busco alguém que me incite e que me faça querer ser cada vez melhor. Não desejo relações fáceis e simples de se compreender, quero o complicado e o de pouco acesso. Porque me canso do fácil, me canso de pisar no bom e velho piso. Quero mudança, revolução, idéias novas, bandeiras levantadas. E o dragão também quer. Quero janelas novas, pisos e paredes diferentes. E o dragão também quer. O tal dragão me provocará eternamente e eu nunca poderei ver a estréia triunfal dele, ele simplesmente de-sa-pa-re-ce quando eu mais preciso mostrá-lo, exibi-lo. Quando mais preciso mostrar a minha força e coragem. Quando eu preciso soltar o fogo que vem das ventas dele e que, constantemente, aquecem a região da minha nuca.

O jornalismo é uma paixão insaciável, minha e do dragão. O jornalismo se alimenta dos imprevistos da vida, eu e o dragão também. Eu e ele queremos viver as emoções da notícia, do furo e, educando através da comunicação social, pois é necessária extrema responsabilidade. A profissão é árdua e não concede um instante de paz enquanto não informa, não educa e não acrescenta. Tive dezoito invernos extremamente bem vividos e agradeço a Deus pelo clima da estação ser diferente do meu emocional. Aqui, dentro de mim, apesar da existência do dragão, brilha intensamente um sol, um sol que alivia, traz paz e permite as brincadeiras matinais, vespertinas ou noturnas do dragão.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Reconstituindo os sobreviventes

        
(As surpresas da vida são inúmeras, algumas belas, outras não. É fato que todas nos acrescentam. E machucam, machucam).
Os Sobreviventes de 2010, uma tentativa porca de ser Caio F.

Zanzibar, quem sabe, é uma boa opção, acredito. Ela me pergunta voraz com os cabelos caídos costas abaixo e eu respondo: Por que não? Como um trem desgovernado ela continua: você pode pelo menos mandar um cartão postal ou um email ou sinal de fumaça, mas um cartão postal, ah como eu desejo um cartão postal. Um cartão postal para que eu possa mostrar para os demais onde você foi parar, onde foi dar a sua vida, e você se perguntar: quem diria que viver iria dar nessa merda e as pessoas perguntarem: que cara louco, como ele foi parar num lugar desses e que todos morram de saudade, morram de saudade, não é isso que te importa? Todos morrerem de saudade de você, aquela angústia, aquela saudade que você tanto sentiu. Todo ser humano é um tiquinho sadista, meu bem. Gostamos de torturar. E você em Zanzibar quase um Idiana Diones, para que as pessoas possam dizer: ah como ele era bonzinho, como ele fazia as coisas direitinho, como ele era com-pe-ten-te, e ficasse na nossa boca aquele gosto amargo por não ter te dado a atenção devida, não ter te oferecido o que você precisava, essas coisas assim. Sem parar se abana com a capa do disco de Maysa e não para de fumar e não para de beber vodka nacional sem gelo e sem limão. Quanto a mim, a voz já desgastada pelo tempo, fico aqui mesmo pixando muros contra a privatização das empresas, um dia de santa outra de puta, um dia nublado outro de sol, um dia cinza outro bem colorido... Enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para pagar essa poltrona de couro autêntico onde vossa reverendíssima assenta a sua preciosa bunda e essas pilastras em detalhes carolíngios que já foram observadas por inúmeros historiadores de arte, pena eles não descobrirem que são falsas, mas eu as tenho como verdadeiras e ninguém me contradiz, digo que paguei, sei lá, cinqüenta mil e não paguei e não paguei. Meu Deus que aconteceu, que aconteceu, seu pau murcho e os bicos dos meus peitos que sequer ficaram duros, não saem da minha memória, não saem. Ocupam o lugar mais obscuro e fétido dela. Éramos diferentes, éramos melhores, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos mais, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou.

Cultura demais faz isso com o corpo da gente, filmes demais, livros demais, palavras demais, nunca consegui te possuir por inteiro. Parece que todas essas coisinhas, essas coisinhas que a gente diz que nos acrescentam, me distanciavam de você, me distanciavam, me distanciavam e eu me masturbava me masturbava e me masturbava, depois chorava com a cabeça enfiada no travesseiro, ainda com culpa, nojo ou vergonha, mas agora tudo bem, isso não é coisa pra gente se importar. Mas eu te dizia que o que acontece é que somos bons-intelectuais-frustrados-que-ainda-não-lutaram-por causa-alguma. O teu negócio é homem e o meu é mulher. Podíamos até formar um casal incrível com Greta Garbo e aquele mariado veado dela, não se irrite, não se fragmente, não tenho nada contra veados, queridinho, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada contra o que soe a: uma tentativa. Tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, uma coisa apertada, apertada. Tenho uma coisa que dói lá dentro, lá no âmago, no âmago. Tenho uma angústia excrucitante, excrucitantíssima. Um sufoco, uma sede, um peso. Eu só queria ser feliz, cara, gorda, feia, desavisada, ignorante, alienada, e fe-liz, fe-liz! Podia ter dado certo entre a gente, ou não, eu não sei bem o que é dar certo, acho que nunca vou saber, nunca vou saber, saber. Que lindo nós com Marx, Nitzsche, Sartre, depois Edgar Allan Poe, aquele sonhos tolos colonizados nas cabecinhas idiotas, ouvindo músicas francesas, gemidas, doídas, sofridas, eternas. Já li tudo cara, já tentei quântica drogas psicanálise ioga suicídio vôlei corrida astronomia umbanda boate gay meio ambiente, só sobrou esse nó no peito, e agora o que faço? Você vai curtir o seus nativos em Zanzibar e me mandará um cartão postal me contando de ontem à tarde, o passeio de barco. Deve haver algum barco por lá, imponente, pomposo, branco, branco como o futuro, leitoso e mergulhamos nessa brancura, nessa brancura. Deve haver algum tipo de dignidade nisso tudo, não me pergunte onde, pois eu te perguntaria também. Perdi minha alegria, anoiteci, deixei de inaugurar muitas situações, bem eu queria inaugurá-las, linda, fina, montada & sau-dá-vel, ah como eu queria! E as pessoas batiam a mão no meu ombro e diziam reage, reage, a vida é mesmo assim, num dia se perde, noutro se ganha, você é tão inteligente, tem grande po-ten-ci-al, é tão capaz, tão engajada, tão desenvolta, tão comunicativa, tão. Cadê a causa, cadê a luta, cadê o po-ten-ci-al? Claro que você não tem culpa, coração, estamos juntos, sempre estivemos juntos, você do meu lado, eu do seu lado, juntos pela eternidade – branca.

O que nos difere é você tem o verdinho da esperança brilhando nos olhos, você quer escapar da dor, porque dói. E eu não, quero senti-la como nunca senti nada antes, quero me dedicar somente a ela, até o fim dos dias, somente a ela. Não estou desesperada, não mais que antes, não se preocupe, meu bem, depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto e rivotril, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois caio no porre novamente, bato o carro, me sujo, me sujo. Não vou tomar nenhuma medida drástica, até porque não existe coisa mais triste que continuar sem ter fé nenhuma, insistir sem acreditar, lamuriando e esperando o sol nascer por detrás daqueles edifícios estranhos, meio tortos e eu aqui sozinha, sozinha. Ah, me faz um cafuné, toca meu coração com esses teus dedos longos e frios, me socorra, não me deixaram ser a coisa boa que eu era; e ela se aconchega no meu peito e me pergunta se não está feia demais, velha demais, acabada demais e eu digo que não mas ela não acredita e repete todas as perguntas e eu digo que sim e ela chora e ela lamenta, e ela me empurra e diz que estou sendo um insensível, eu tento entendê-la, mas não consigo, não consigo. Ela se debate, me manda embora e pede para que eu não esqueça do cartão de Zanzibar, que eu encontre uma pele branca e pura, que aconteça uma coisa bem bonita, bem maravilhosa, bem doce, que me faça acreditar nas coisas de novo, que me dê estímulo para viver, para que eu não fique no estado dela, de sapatão cansada com aqueles vincos na boca e aquelas olheiras horríveis.

E eu digo que não tem jeito, que já nos perdemos no meio da estrada sem mapa algum sem carona alguma a noite está caindo e só nos resta seguir no escuro, da noite, da vida. E tudo continua bem, bem, afinal, sobrevivemos.