(Um conflito entre o cisne branco, o dragão e o cisne negro)
à mamãe Luciana e ao eterno Caio
I – Uma oração para o dia vinte e seis
Senhor, abençoe todos aqueles que lutam, sem desistir, sangrando muito, incansavelmente, por qualquer coisa, por coisa qualquer. Neste vinte e seis do mês três, que as lágrimas possam transformar-se em sorrisos e, que o vento que dança e balança as folhas daqueles pés de girassóis, balancem os cabelos pretos e a inocência de mamãe. Que o senhor traga paz e descanso aos velhos corações, já que, a velhice é a única doença que não tem cura. Que aquilo que, com descuido, chamamos de amor, não se banalize e não seja utilizado pelos que amam a falsidade. Olhai pelo pintor, pelo vendedor de picolés. Reconforte a prostituta, que enfrenta uma rotina triste e perigosa. Cuida daquele que ama o próprio e não ama si mesmo. Dê comida a quem tem fome. Dê água ao sedento. Neste vinte e seis, que o sol nasça mais quente, que o gramado reflita o verde mais esperança, e que, aquele executivo que já acorda cansado possa ouvir o mais doce canto dos pássaros. Que as pessoas, todas elas, se libertem das redes virtuais e façam o uso da boa educação no cotidiano. Que todos tenham a oportunidade de se alfabetizarem e assinarem seu nome com orgulho. Que ninguém seja excluído ou se torne alvo de preconceito. Deus, olhai para nós, que queremos viver o amor da sua forma mais intensa, para nós, que não sentimos há muito tempo o cheiro de mel & girassóis. Para os soberbos, para os que fingem ser algo que não são, ou desejam ter uma vida diferente daquela que possuem, não dê força, nem sol, nem quentura, nem clareza nenhuma. Nesse fim de março, nesse vinte e seis, nessa entrada póstuma do sol em Áries, afasta todo o mal de mim e daquelas pessoas que amam do fundo do coração. Não digam Amém. Apenas peçam. Às vezes, pedir é a única coisa que ainda pode se fazer.
II – A respeito da essência do cisne branco
Há trinta e cinco anos, o dia vinte e seis acordara da melhor forma possível. Deus tinha enviado o sol mais luminoso. Tudo estava diferente do que está: as coisas eram traçadas por contornos mansos e nada feria como fere agora. Nascia Luciana, e, com ela, para morar dentro de seu coração, um típico cisne branco: clássico, extremamente sensível e de contornos singelos, como os que traçavam as coisas no dia de seu nascimento. Um cisne diferente de todos aqueles que haviam estreado até aquele um mil novecentos e noventa e seis. Aos dezesseis, fez cara de princesa da Disney, de Cinderela, e até hoje diz que não foi culpa dela. A principal causa do sofrimento do cisne é a sua brancura. Sua brancura o impede de desafiar situações interessantes, de levantar novas bandeiras, de pisar em novos pisos, de “apostar em cavalos diferentes”. O cisne branco contenta-se com a simplicidade, com a explosão instantânea da beleza do lago. Ele tem medo de contornos duros, contornos duros podem ferir. O cisne branco tem rotina. Flutua sempre pelas mesmas águas, ouve sempre os mesmos sons e, constantemente, sente o cheiro de mel & girassóis que todos aqueles que amam verdadeiramente desejam sentir. A mesma brancura que priva o cisne de experiências estarrecedoras, confere-lhe extremo pudor, bom gosto e afeto. Todos se sentem acolhidos pela sua brancura. O cisne branco “completa” a beleza da paisagem. O cisne branco não possui grandes vaidades, não flutua de maneira arrogante, não faz questão de se mostrar. É discreto. Discrição é a principal característica dessa ave. O cisne branco mora com Luciana e não quer, de modo algum, abandonar seu habitat.
III – O cisne branco e o dragão
Não é surpresa para você, mamãe, que tenho um dragão que mora comigo. Um dragão, teoricamente, não poderia ser amigo ou manter qualquer relação com um cisne branco. O dragão que mora comigo insiste em querer acinzentar a brancura iluminadora do cisne que mora contigo. O dragão não é sensível, não age com o coração, não se apega à ninguém, não sofre por amor. O dragão é uma daquelas criaturas que deveriam viver sozinhas, isoladas do caos urbano, da UFU e do Jornalismo. O modo grosseiro como o dragão solta o fogo das ventas pode queimar as penas do seu cisne. O dragão que mora comigo só tenta fortalecer o cisne que mora contigo. O dragão não contenta-se com a beleza do lago ou com o cantar doce dos pássaros. O dragão não desfila, o dragão nunca se inaugura. Te peço desculpas pela não-estréia, pelo não-abrir das cortinas, apesar de que, eu espero sempre as palmas, ou melhor, o balanço das asas do cisne branco.
IV – O dragão deseja um cisne negro
Muitas, incontáveis vezes, tive vontade de colocar-me de frente para o cisne branco. Seria muito mais interessante um cisne negro. Da cor da noite. Um cisne desapegado do conceito de limite, que flutuasse por diferentes águas, que sentisse diferentes aromas, que não se abalasse com a presença de um segundo cisne. Um cisne um pouco mais forte que o branco. Só desejamos isso, eu e o dragão que mora comigo, porque preocupamos com a felicidade e a paz interior do cisne. Tememos sua fragilidade. Tememos sua rotina. Tememos sua inocência. Tememos que ele morra como nasceu, todo branco, sem mancha negra alguma. Manchas negras, aquelas que nos marcam quando perdemos um grande amor ou quando morre um parente próximo. Tememos que o cisne branco morra sem ter vivido, apenas tendo existido.
V – A morte do dragão e, por fim, a solução
Solucionei a problemática: mamãe Luciana continuará morando com o cisne branco e eu, eu, com um cisne negro. Destruirei o tal dragão, habitante do meu coração e vísceras. Conviverão dois cisnes, cada qual com uma personalidade, um ajudando o outro. Um contrato bastante justo, mamãe: você continua com sua leveza e fragilidade e eu atenuo meus duros contornos e insensibilidades. Você será o dia, eu serei a noite. Os dois cisnes sentirão para sempre o cheiro de mel & girassóis, pois ambos amam da forma mais pura e verdadeira. Sinta, agora, o encontro dos dois cisnes e ouça a minha voz, abafada, desejando a doçura mais doce, por todos os anos de nossas vidas.